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009 | Roma – Coliseu

Foto do escritor: rpegorinirpegorini

Dia 9 - 5 de janeiro de 2008 – Itália / Roma

Permitam-me iniciar esta crônica buscando ligações entre os povos e suas histórias milenares nas profundezas das raízes da cultura indo-europeia. Pois é nelas que está o berço do mito da maior cidade de todos os tempos na história da civilização ocidental: Roma. Imagino que somente Jerusalém poderia rivalizar nesse patamar de magnitude no panteão do legado das aglomerações humanas. Pesado, não é? Mas, meu amigo, minha amiga, quando se fala em Roma... são quase TRÊS MIL ANOS de história. E não se trata somente de uma questão cronológica, mas também é necessário considerar a pujança e o poderio territorial alcançados. Não é qualquer cidade, não é mesmo? A obra de Homero é uma pista importante nesse momento da investigação e nos levará ao ponto inicial desse fundamento.

Um dos heróis da Ilíada é Enéias, filho de Anquises e Afrodite (Mitologia romana = Vênus). Quando Heitor, valoroso príncipe combatente troiano, tombou morto por Aquiles, restou a Enéias tornar-se o mais importante guerreiro da defesa de Troia. Mas o último suspiro de vigor dos sitiantes e a esperteza de Odisseu (Ulisses) foram demais para os troianos e a fortaleza caiu debaixo das patas do cavalo grego. Afrodite ainda conseguiu uma brecha nas dobras do tempo para salvar seu filho, avisando-o para fugir da cidade: a ele estava reservado um futuro grandioso, que iria repetir a glória troiana em outras paragens. Enéias e sua família então evadem-se mediterrâneo adentro, chegando por linhas tortas a Creta.

Ali Eneias fundou Pérgamo, imaginando que a ela caberia o esplendor previsto na profecia. Mas sucessivas catástrofes, secas e epidemias, afugentaram Eneias e seu povo da ilha. Vagaram pelo mediterrâneo novamente, cumprindo humildemente sua odisseia particular. Salvaram Aquimênedes, deixado pelos Argonautas na ilha do ciclope Polifemo; na Sicília, morre Anquises; Eneias aporta já viúvo em Cartago, numa época muito anterior à rivalidade com Roma que levaria esta emergente metrópole africana à destruição. Ao deixar a cidade, Dido, rainha e fundadora daquele reino, brutalmente apaixonada por Eneias, suicida-se.

Chegando na península itálica, antigamente chamada de Hespéria, o herói troiano acha jeito de descer ao Hades, morada dos mortos, para falar com o pai, que lhe confirma os sonhos de grandeza das gerações futuras num local muito próximo dali. Enéias toma decididamente o rumo do Lácio, onde encontra o rei Latino. Este deve compromisso a uma antiga profecia tribal: entregar sua filha Lavínia a um estrangeiro para assim gerar uma raça poderosíssima, incumbida de governar o mundo. Realmente, após muitas aventuras, incluindo um duelo contra outro pretendente, Eneias casa-se com Lavínia e lança raízes naquela terra. Registros indicam que mais tarde abdicaria em favor de um de seus filhos. Mas uma dinastia havia iniciado, ocupando as sete colinas do Lácio. Entre os descendentes daquele sobrevivente troiano um dia nascerão dois gêmeos, chamados Rômulo e Remo.

Virgílio, autor da Eneida, suspirava superar Homero com o que deveria ser o mais perfeito poema épico já escrito. Entre muitos truques estilísticos, estruturou a estória invertendo a narrativa da Ilíada e da sua continuação, a Odisseia, começando com uma viagem e depois desenvolvendo a conquista bélica. Por encomenda de Augusto, imperador que desejava estabelecer raízes nobres e profundas para uma predestinada Roma, Virgílio começou a escrevê-la em 29 a.C. e considerou a obra completa - embora ainda não suficientemente bem trabalhada -, dez anos depois.

Quem achar que Augusto estava superestimando a grandeza de Roma, fundada 750 anos antes da existência de Cristo, precisa andar pela cidade e contar quantas fontes encontra pelo caminho. Umas mais simplesinhas; outras fantasticamente criadas por gênios como Michelangelo e Bernini. São milhares de fontes espalhadas pelas ruas, ruelas e becos de Roma. E lembre-se dos aquedutos. Não foram apenas obras de embelezamento para avenidas ou praças. Eram elementos necessários para a vida prática e cotidiana da população. À medida que o número de habitantes aumentava, com a cidade acolhendo viajantes do mundo todo em busca de felicidade, fortuna, emprego, romance, educação e cultura, fazia-se cada vez mais necessário providenciar sistemas de abastecimento de água para beber; água para tomar banho; esgoto; de leis para regular as relações entre tantas pessoas reunidas; de idioma em que todos se entendessem e de valores sociais e morais para que todos pudessem viver sob as mesmas convenções num mesmo lugar.

Roma moldou os regulamentos, os projetos urbanísticos e a ambição predatória que construiu o imperialismo como o modus operandi da civilização ocidental. Ser cidadão romano significava pertencer a uma classe de vencedores, significava possuir uma espécie de prevalência de um sobre todos os outros, significava a vitória de um conceito que varria o planeta incorporando tudo que lhe fosse útil para a sobrevivência, inclusive as mitologias e costumes locais dos povos vencidos (fagocitando inclusive o Olimpo dos gregos). Talvez lhe venha à lembrança alguma cena de filme passada em algum país tropical, numa daquelas republiquetas de bananas na qual o mocinho puxa o passaporte do bolso do casaco e anuncia, num gesto salvador para todos os que dependem da sua intervenção: “Sou cidadão americano!”. É uma pálida ideia de como teria sido na Roma antiga. Ser romano não era pouca coisa.

No dia seguinte pegamos os ônibus turístico (aquele que faz um roteiro pré-estabelecido pela cidade com fones de ouvido e locução em várias línguas). Quando a cidade é bem grande, tal como Roma, vale a pena fazer isso porque você economiza tempo vendo as principais atrações sem gastar em deslocamento. Dá para conferir rapidamente o que vale e o que não vale a pena ver com mais calma depois. Se quiser, você pode descer do ônibus e visitar o museu, ou o monumento, ou seja lá o que for, e depois pegar o próximo ônibus (normalmente dá uma hora entre um e outro. Tem paradas específicas para estes tipos de ônibus). 



Em Roma, proceda como os romanos. E no fim do dia, teríamos constatado que infringimos essa mais elementar regra turística. Mas São Expedito, protetor dos viajantes, há de nos perdoar, perdoado que foi da sua vida devassa pisoteando um corvo e convertendo-se ele mesmo num legionário exemplar e façanhudo cristão. Subimos no ônibus turístico bem cedo na manhã do sábado nublado. Pegamos o primeiro que saiu; voltamos no último ônibus da frota; aproveitamos tudo que se podia aproveitar. A fome de Roma era do tamanho do milenar império. Circulando pela cidade, tem-se a estranha sensação de que os estilos e engenhosidades filhas dos séculos misturam-se atrapalhadamente nas fachadas das mansões bizarras do modernismo cafona italiano, pombais mussolinianos, arranha-céus futuristas e os palácios medievais espalhados e escondidos atrás de jardins murados por tijolos do tempo de Pedro. Fica-se pensando nisso enquanto o ônibus vai passando pelo coliseu, pela ponte de Sant’Angelo ... simples assim.

Descemos no Fórum de Trajano, bem no centro de Roma, onde você ainda encontra escavações ainda sendo feitas. Aliás, Roma é um gigantesco sítio arqueológico. Diariamente estão sendo encontrados tesouros escondidos no chão da cidade. Para qualquer empresa ou cidadão de Roma, é preciso uma autorização oficial da prefeitura para escavar qualquer buraquinho na cidade. E dizem ser bem difícil consegui-la. Enquanto estávamos lá, se falava muito que o pessoal que abria uma nova linha para o metrô encontrou uma sala nos subterrâneos que teria sido construída por Rômulo e Remo e a partir de onde teriam começado a construir a cidade… meio difícil de engolir, né?… Como nunca mais ouvimos nada a respeito, deve ter ficado só na suposição. 



Visitamos a Piazza della Republica, a Piazza Venezia e quando começou a chover, achamos o monumental monumento a Vittorio Emanuele II. Esse troço é tão grande que você tem que ir quase uma quadra inteira de distância para tirar uma foto do monumento completo. Ali tem o túmulo do soldado desconhecido e o Museu do Risorgimento, onde nos abrigamos da chuva. 


O personagem principal do museu, adivinhem quem era? Giuseppe Garibaldi, o famoso herói de dois mundos. Lá tinha tudo sobre o cara. Desde a carteira de dinheiro até a bota furada pelo tiro que quase lhe arrancou o pé fora. Não me perguntem quando nem onde, porque se fôssemos ler todas as plaquinhas e textos explicativos que apareciam nos museus, estaríamos ainda lendo plaquinhas em Nápoles até agora… Mas o tema do museu é a grande luta empreendida pelos italianos pela unificação e independência da Itália, de 1848 a 1870. Claro, Mazzini, Carlos Alberto da Sardenha, Conde Cavour estão presentes e muitas batalhas históricas estão descritas neste museu. Mas lá achei também o frontispício da 1ª edição de Pinocchio, de Carlo Collodi, cuja concepção gráfica e estética o Roberto Benigni resgatou no seu filme. No nosso imaginário persiste a figura do Pinóquio de Walt Disney (ambientada na Suíça, lembram?), não é mesmo?… Agora, pensando bem… fico tentando imaginar qual seria a linha que conecta Pinocchio à unificação italiana… talvez fosse melhor ler ALGUMAS plaquinhas…  



A chuva amainou e fomos para o Coliseu.


O Coliseu talvez seja o mais impressionante monumento humano ao sofrimento e à morte na Europa, constituindo-se numa assombrosa entidade monolítica e ultra pesada, pontuando o final da Via dei Fiori Imperiali. Ali o ceu é encoberto por notáveis blocos gigantescos formando um anel de pedra monumental. Quanto mais perto do Coliseu, mais essa impressão visual cai sobre você com um peso maior até do que os campos de concentração nazistas, porque neles a morte e a tortura foram distribuídas entre várias unidades no território europeu, desconcentrando um pouco a carga da sensação. Estima-se que entre 300 mil e 500 mil vidas tenham sido ali sacrificadas ao longo dos mais de quatrocentos anos de atividade do estádio, tendo os muros de quarenta e oito metros como limites do testemunho vivo e presencial desses massacres. Não foi somente pelas mortes, nem pela quantidade nem pela qualidade. Mas a vergonha está em que essas mortes eram assistidas e apreciadas pelos romanos como se fossem programas de televisão dominicais. Gladiadores, cristãos e escravos foram os humanos mais abatidos ali, mas saiba também que  aproximadamente um milhão de animais foram sacrificados para o deleite dos cidadãos romanos. Entoando “pão e circo” nas suas preces vespertinas da semana, repetindo rituais de incivilidade e sadismo autorizados pelo Estado Romano e alargando os limites da insensibilidade que só os humanos dispõem. É realmente um colosso (embora seu “verdadeiro” nome seja Anfiteatro Flaviano). Pegou este nome porque tinha uma estátua “colossal” de Nero, que ficava ali perto. Quem viu o filme Gladiador deve se lembrar que os animais selvagens vinham do subterrâneo do circo. Pois é, hoje vê-se apenas uma simulação do piso principal. As galerias subterrâneas estão à mostra, com todas suas subdivisões. Nos corredores do Coliseu havia uma exposição sobre o teatro grego (particularmente a tragédia grega). 



Grupos são uma verdadeira praga… quando se está curtindo o local, chega aquela gangue de 20, 30 pessoas, com um cara com uma bandeirinha levantada bradando para todo o grupo ouvir… vimos grupos mais civilizados e com tecnologia supra - um microfonezinho na boca do guia e as pessoas do grupo com receptores sem fio para ouvir a explicação dada num volume bem baixinho. Mas ouvi um guia (que não tinha microfone e tinha que falar aos berros para todo mundo ouvir) destes grupos falando que o coliseu era todo coberto por placas de mármore e que todas as placas foram arrancadas mais tarde para a construção do vaticano… verdade? Mentira? Se alguém souber de alguma coisa… o fato é que as paredes do coliseu estão todas furadas, como se houvesse um revestimento original que foi depois arrancado. 


Dali demos uma olhada no Arco de Constantino, tentamos visitar o Palatino (mas já estava fechado) então voltamos para o hotel para tomar um vinhozinho e dormir a segunda noite em Roma. Não sem antes pagar o mico do dia que foi esperar horas pelo ônibus turístico na chuva num ponto onde a nossa linha contratada não pararia jamais. Caminhamos enfrentando bravamente a chuva com apenas uma ridícula capa plástica talvez por um quilômetro e meio até invadir enraivecidamente o escritório da empresa do tour e discutir com os atendentes num inglês italianizado cheio de porcas-miséria e porcos-dio, que foram a herança idiomática do velho Domingos Pegorini nas suas noites de fúria dominical. E, portanto, faltou um pouco de romanicidade aos viajantes aqui... até termos que admitir ao motorista do ônibus que esperamos como pintos desabrigados na chuva... na parada errada. O hotel valia a pena ser curtido, e eu já estava quase entendendo as falas dos filmes italianos. Depois, na janta no Jimmy e Giuseppe, sensacional indicação do pessoal do Hotel Mariano, tivemos a oportunidade de sermos novamente tratados como seres humanos sob a guarda e proteção dos deuses do imponderável.

 

 

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1 comentário

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Leonardo Schneider
há 4 dias
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Ótimo relato, Ricardo! 👏👏👏 Se não me engano, há um filme do Fellini em que ele brinca com isso de as obras do metrô romano não avançarem muito porque toda escavação encontra um sítio arqueológico. Roma é uma adorável bagunça com muita História em cada canto.❤️

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