Meu nome é Aedo, e creio ser o último dos trovadores, pois há anos não ouço falar de mais nenhum colega em atividade nas aventuras de andarilho. Venho de um tempo em que as montanhas dormiam nas entranhas do mundo, em que os pássaros ainda não haviam aprendido a piar, e de quando o caminho do Homem ainda não riscava a relva virgem em que eu pisava. Sou tão velho quanto a confusão dos ruídos da mata, que começavam a se organizar para parir algo que depois chamaríamos de música. Vi tudo isso nascer, crescer, gerar aldeias, tribos, povos e nações, desentendimentos, guerras e extinções, pois a estrada da minha vida começa no princípio das eras antigas, no presente dos que já foram esquecidos.
Foi a Música quem me salvou da desistência da ética quando perdi a visão durante uma chuva de meteoritos e seus misteriosos gases venenosos. Aprendi a cantar minhas experiências por indução, pela teimosia e pela compaixão da natureza, que se apiedou da desgraça de um indigente do destino. E lá me fui, por terras tortas, tateando no vazio das almas e na esperança do encontro. Minha fé me empurra para uma cidade mítica, cujo nome ainda preciso descobrir – e espero fazê-lo antes que perca o andamento. Lá, preciso cumprir o final de minha missão neste plano da existência: cantar minha última canção para os Deuses, que aguardam, já impacientes, o término desse ciclo de devoção.
Numa aldeia perdida nas montanhas, cheguei e fui imediatamente amparado pelas mães dos subúrbios, atentas às mudanças que os esquisitos sempre trazem. E, antes que pudesse contar qualquer coisa a elas, avisaram-me que ali a noite tinha se despedido das estrelas. A cidade não conhecia os astros brilhantes desde que os heróis locais, revoltados em busca de justiça pelas suas crianças natimortas, tinham desafiado os desígnios da incerteza. Lembrei-me de uma lenda sobre os guardiões dos céus e do destino da humanidade, e cantei naquela noite, na praça da cidade, a Canção da Profecia, que previa o final dos tempos quando as estrelas parassem de brilhar. No meio da canção, senti na epiderme as flutuações das ondas confusas das mentes e dos corpos dos habitantes, assustados com o péssimo presságio que eu trazia. Amavelmente, interromperam a canção, deram-me água, mantimentos, novas roupas e me indicaram outra trilha para a saída dos seus corações, envergonhados por desacolher um pobre cego andarilho e entregá-lo novamente a um destino indecifrável. Os anos que acumulei foram suficientes para interpretar, mais uma vez, que nunca estamos preparados convenientemente para a rendição que a vida exige. E continuei minha andança.
Senti o cheiro do mar na terceira noite, e para lá me dirigi, sabendo que no mar os homens encontram alimento, energia, temperança e boa-fé. Albergado pelos pescadores, pude dar a eles o conhecimento da Canção de Geremias, que se apaixonou por uma sereia e com ela inventou uma dança com a qual fazia o mar obedecer às suas vontades, por mais loucas que fossem. Meus ouvidos captaram espertamente o espanto e a modéstia dos ouvintes deslumbrados, que não me deixaram pausar enquanto não lhes revelasse o que mais poderia acontecer para um casal tão extraordinário. Certamente, na esperança de transformarem suas próprias vidas em algo mais determinado que a miséria de suas orações. Cantei o final da história em versos Alexandrinos, carregados de intervalos e rimas adocicadas, mas não consegui dissipar o temor que instalei entre seus sentimentos marinhos. Tive que delatar a saudade da sereia, que a arrastou de volta para o fundo do oceano e aprisionou Geremias em uma nostalgia infinita. Não pude esconder que, ainda hoje, ele dança todos os dias na beira da praia, cada dia uma nova dança, na esperança de trazer sua amada de volta. Embora essa canção seja muito triste, trouxe ao pessoal da beira-mar um cadinho de mistério e de fé nas ondas do mar que nunca havia germinado até então, cativos de tanta humildade e complacência que eram os habitantes dessa aldeia.
Do mar, não sei como, talvez impulsionado pela força da vontade alheia, cheguei rapidamente ao Deserto dos Ventos Violentos na terceira noite de caminhada. Continua sendo, desde a última vez que passei aqui, uma paragem-oásis de tribos nômades, transeuntes das areias ferventes do esquecimento. Para eles, pude cantar a antiga Lenda dos Dois Deuses, da Tempestade e do Trovão, que percorriam a noite dos séculos guerreando, rajadas trocadas e trançadas num caleidoscópio sonoro e visual, relampejando na efervescência do deserto. Por milênios, os ventos de norte e sul batalharam animadamente até que um jovem mortal descobriu uma canção encantada capaz de domá-los e convertê-los em suaves brisas, que acariciavam as tulipas negras dos oásis. Mas o problema do ser mortal é que ele não dura para sempre. E assim que a velhice e as doenças do espírito conduziram o bardo ao seu descanso eterno, a canção se perdeu. Egoísta que era, como todos os mortais sem exceção, nunca se preocupou em deixar um herdeiro de suas competências.
O conhecimento, portanto, é um dos fios que conduzem o primata da condição de antropoide para humano. O outro é o senso de bondade. E desses dois condutores temos adoradores espalhados nas posições mais importantes e cobiçadas das aglomerações mundanas, prova da irrefutável capacidade de criar, desde sempre, tanto rotas de fraternidade quanto de extermínio da nossa espécie. Foi para o Rei Raja-Vidya que pude aprofundar a Canção sobre o Sábio que Desejava Dominar Todo o Conhecimento do Planeta e, em sua busca inesgotável, encontrou, nas terras do gelo eterno, Tianlung, o dragão que continha todos os segredos do universo. Tão grande era a ambição do sábio que ele acabou por oferecer a Tianlung a sua própria alma em troca do saber absoluto. Conseguiu o que quis: o dragão lhe conferiu a carga de sapiência pretendida. Mas o fardo dessa propriedade cobrou caro por suas responsabilidades conexas e o sábio começou a envelhecer um ano a cada mês. O desespero invadiu a rotina e ajudou a consumir ainda mais rapidamente as suas forças, também, pelo pavor de morrer rico de entendimento, mas pobre de experiências. Num fulgor de impavidez, suplicou ao dragão que lhe investisse da ignorância novamente. Então, tive que parar de cantar. Raja me perguntou avidamente como terminava a história, mas fui obrigado pela honestidade a confessar que não sabia como a canção terminava, pois não invento as histórias de minhas músicas. Só o que pude fazer foi consolá-lo com a verdade irrefragável da consciência: a ignorância abençoa quem não está preparado para o conhecimento.
Continuei a marcha por mais alguns anos até sentir o cheiro estranho de uma doce alfazema e sussurros voejantes pairando e bailando em volta dos meus cabelos. Naquele momento, paralisado pela compreensão adquirida por séculos de perambulação, caiu-me a certeza: cheguei à almejada cidade, onde completaria o ciclo da minha missão terrena. Não seria necessário nomear o lugar: ali percebi a verdade dele já impressa no meu coração desde que nasci e, enfim, teria a oportunidade de prestar contas do meu repertório aos Seres que pilotaram silenciosamente meu talento por tantos palcos e calendários. O cansaço de toda uma vida finalmente se impõe, e percebo, maravilhado com a poética do verso final, a presença invisível de todos os reis, magos, sábios, guerreiros e camponeses, de quem consegui enlevar a rude existência com o poder contido em cada melodia dos indivíduos que conheci e que transformei. Por fim, compreendi em sua plenitude o que a alma já sabe desde o princípio de tudo: cantar é conversar com os Deuses.
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