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Bolt, Isadora e Isabel

Foto do escritor: rpegorinirpegorini


Bolt não estava lá na casa antiga quando Isabel morreu. Mas foi o único que encontrei quando voltei para casa e precisei desabafar e entregar meus rancores ao esquecimento. Seu rabinho abanando alegremente foi a primeira coisa capaz de me tirar do torpor da morte de minha filha, linda, amada, inesquecível Isabel. Meu mundo inteiro agora resumia-se naquele rabinho balançante, peludinho e feliz. Quem sabe a felicidade de Bolt me trouxesse de volta à tona e me desse alguma razão, por mais frouxa, irracional e insensata que houvesse, de continuar vivendo.

Fui fazer um café. Porque é sempre ao café que recorro quando não sei o que fazer. Instintivamente, puxei conversa com Bolt.

- Você é que é feliz, Bolt, você tem a mim e eu nunca o abandonarei, porque você é, agora, talvez a única possibilidade que tenho de não me atirar debaixo de algum caminhão ou me atirar desse décimo andar desse edifício nojento, dessa vida triste e vazia. Ainda bem que tenho você.

Bolt me rodeava faceiro e latindo mansamente, num ingênuo contraponto à minha brutal melancolia. Mas ele sentiu que eu estava arrasado e veio encostar-se nas minhas pernas, apoiado nas patas traseiras, com a linguinha comprida lambendo o ar, me dando todo o carinho que vinha de seu coração pequenino e adocicado, um ser de luz a iluminar com seu amor a minha infelicidade. Nem o café me manteve alerta, talvez fosse um mecanismo de defesa tentando me poupar daqueles momentos inconsoláveis. Atirei-me de roupa e tudo na cama e adormeci observando aquele rabinho abanando ao lado da cabeceira.

Sonhei com Bolt me puxando para o parque, onde encontrava seus amiguinhos e onde levava Isabel na pracinha com os brinquedos de madeira. Eis um lugar na minha vida onde fui feliz e onde os rastros de Isabel deixavam um aroma de infância capaz de disparar todos os gatilhos das minhas emoções. Bolt era o bichinho preferido dela, e essa preferência passou de filha para pai com uma facilidade tão grande que as manias do cachorrinho quase se confundiam com as manias da criança. Resultado do amor que ele trouxera para dentro daquela casa que habitávamos desde que Isadora nos deixara, com Isabel ainda nenê no berço. Ela nem chegou a conhecer a mãe.

Mas conheceu Bolt. E Bolt agora passava a ser o elo entre a minha triste nostalgia e os momentos de felicidade ao lado da filhota brincando com o cachorrinho.

- Já está na hora de você acordar e enfrentar a vida novamente.

Olhei para a beira da cama e não tinha ninguém, olhei para o resto do quarto, levantei-me, fui até a sala, procurei na cozinha, no banheiro... nada!

- Quem você está procurando?

Olhei para o chão e não acreditei. Era Bolt falando.

- Não acredito! Você está falando comigo? Você entende o que eu digo?

- Eu SEMPRE ouvi você.

Ele me explica que adquiriu essa habilidade misteriosa para me ajudar, porque sente minha dor e quer aliviar meu sofrimento. Mas Bolt começa a dizer verdades que talvez eu não esteja preparado para ouvir. Ele aponta como eu me afasto das pessoas, como eu não permito que ninguém me ajude e como estou me fechando em uma espiral de tristeza e rancor. Essas revelações me revisitam memórias e traumas que tentei há muito tempo enterrar. A relação com Bolt, antes um refúgio de conforto, torna-se um espelho doloroso da minha própria alma. Não é tão bom ouvir verdades atiradas assim de uma forma tão... canina.

Bolt me conta que sua capacidade de falar é temporária e que, na verdade, ele nunca deveria ter essa habilidade. Ele revela que "deu tudo de si" para me ajudar Alex — e que isso era sua última missão antes de "partir". Penso: “Não! De novo, não!”

Com o passar dos dias, Bolt começa a enfraquecer, física e emocionalmente, como se cada palavra que dissesse o estivesse consumindo. Percebo que estou perdendo meu único companheiro. Até que um dia, Bolt me avisa:

- Você sempre teve força para continuar. Eu só queria que você acreditasse nisso.

Bolt, então, morre, deixando-me em mais um momento de luto profundo, mas agora também com um novo senso de propósito.

- Já está na hora de você acordar e enfrentar a vida novamente.

Acordei com Isabel sentada na cama, atirando na minha cara uma verdade que estive relutando em aceitar desde que Isadora morreu.

 

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