Pensou que era um ônibus, mas não. Era a sua própria angústia que o atropelava de mansinho, passando com as duas rodas esquerdas sobre um coração já estropiado pela atrapalhação da gigantesca timidez e pelo tumulto da batalha sentimental que agora encontravam um desfecho. Paralisou de uma forma tão densa que tiveram que trazer um carrinho reforçado para levantá-lo do chão e enviá-lo à esperança ainda sediada no hospital próximo. A princípio, os transeuntes preocupados e verdadeiramente interessados na recuperação da saúde dele corriam de um lado para outro como baratas desbaratadas pela luz de uma cozinha acesa repentinamente. Mas, aos poucos, foram dando-se conta de que a letargia do corpo dele era uma casca poderosa, mas não passava de uma casca, pois o miolo conservava preservados os seus sinais vitais. Então, entregaram suas preocupações ao desvelo de Deus e o paciente à equipe médica de plantão.
Na triagem, o alvoroço congelado do moço foi rotulado como “caso leve para mediano”, e ninguém se deu conta da amplitude da destruição interna corroendo a mente do rapaz. Lá dentro, o entendimento flutuava entre lembranças e sentimentos metodicamente arrasadores e, aos poucos, ia desmoronando silenciosamente. O que havia de pessoal e corriqueiro na vida dele foi se extinguindo suavemente, apagando aos pouquinhos como toco de vela derretida, dissipando episódios e vontades da vida breve. Gustavo foi, gradativamente, perdendo domínios no cérebro que não tinham mais sentido desde as dez horas da manhã daquele dia.
Foi nesse horário que Aline atravessou o pátio, atendendo ao toque apertado tão de mansinho que teve que esperar a repetição para ter certeza de que era a campainha de sua casa mesmo. Quando abriu a porta, lá estava Gustavo, agarrado a uma senhora, fitando-a estarrecido e começando a arregalar os olhos. Só teve tempo de dizer “Sim?” antes de perceber que o rapaz estava entrando numa espécie de paralisia corporal. Ainda ouviu um suspiro lamurioso e suplicante antes de perguntar “Você está passando bem?” e se dar conta de que aquele adolescente que apertou o botão da campainha, que ela nunca vira na vida e agora estava na sua frente vindo do nada, agarrado a uma senhora que parecia ser sua mãe, estava parando de responder aos estímulos externos.
Repetindo só para retomar por essa trilha: Aline nunca o tinha visto na vida. Melhor explicando, nunca o percebera a ponto de ter vontade de conversar ou iniciar com ele qualquer tipo de relacionamento, por mais superficial que fosse. Mas Gustavo a observava desde garoto pequerrucho. E dentro da sua vida mental, Aline era a imagem da beleza e do encanto de uma forma tão intensa que ninguém ou absolutamente nada, nada, nada poderia suplantar. Dentro do fluir elétrico subterrâneo entre os hemisférios cerebrais do moço, a visão da donzela era o motor de sua completa e infinita paixão. Testemunhava todos os minúsculos passos 32 dela, desde a manhã até a hora em que o cansaço lhe esmagava a obsessão, quando Aline passava a habitar os sonhos. Os sonhos de Gustavo tornaram-se, a partir daquela fixação, territórios povoados de devaneios juvenis nos quais ela era a heroína onipotente e onipresente, tal como essa dependência tinha se instalado na sua realidade.
Nem os pais de Gustavo desconfiaram de nada, ocupados que estavam em combater camundongos imaginários, impertinentes, supostamente brotando de todos os orifícios da antiga e decadente mansão enterrada no Baixio do Navalha. Permitam-me abrir um pequeno parêntese aqui: sabe-se que a imagem do valente barbeiro ainda suspensa nas lembranças da comunidade dera, com o devido merecimento, o apelido que acabou como nome e sobrenome do lugar. Pois foi nessa casa um tanto absurda na desesperança que Gustavo nasceu e cresceu, absorvendo daquelas pessoas o clima carente por afeto e sendo sutilmente contaminado pela lúgubre ambiência de solidão que percorria os corações delas.
Os anos passam e vamos encontrar Gustavo abrindo os horizontes de suas percepções e experiências relacionais, mapeando as possibilidades tanto no tempo das ações humanas como nos cenários ambientais da concupiscência. A atenção do rapaz repentinamente encontra um alvo avassalador, esmagador, encantador, contra o qual não existem defesas postas. Os mecanismos do Ego prostram-se, esgotados, em homenagem e em rendição incondicional à criatura musa do novo momento da ingenuidade.
Gustavo descobre a existência de Aline. Tudo o mais que não seja Aline extermina-se aos pouquinhos nos recantos mais longínquos e capilares das memórias recentes ou antigas, vaporizando seus laços com a razão. Seguiu a moça até a casa dela, sempre escondido e olhando de longe, incapaz e inválido para a coragem de deixá-la sequer perceber a sua vigilância quieta e disfarçada. Tanto fez e tanto tentou para espiar a vida da menina que um dia subiu a rua e descobriu o ponto mais favorável para avistar o pátio e a parte externa da casa de Aline. Dali ele podia saborear fugazmente a passagem da musa de uma porta para outra no jardim, procurando as ferramentas para o pai. Conseguia enxergar até a garagem e um pedaço do carro quando este estava estacionado na residência dos vizinhos, o que já lhe servia como aviso de quando o “sogro” estava na guarda da família.
Gustavo, obviamente, ficou absolutamente fanatizado quando descobriu os perfis de Aline nas redes. Colecionava fotos e momentos, primeiramente numa idolatria juvenil inofensiva até mesmo para ele e seus fetiches. Mas a pressão psicológica foi crescendo dentro das agonias complicadas por hormônios fervilhantes e erupções emocionais típicas dessa fase da vida. Gustavo foi se recolhendo à sua vigília digital, perdeu o caminho da rua e aprisionou o coração numa angústia degradante. Seus amigos acostumaram-se com sua ausência e seus pais já não tinham energia para implicar com a teimosia do seu isolamento.
Foi um pouco depois de o pai de Gustavo morrer que ele chorou de egoísmo na frente de sua mãe, pedindo pelo amor de Deus que ela não falasse com a moça da casa rosa com os arcos na varanda. Mas dele ela não aguentava mais a covardia e atravessou a quadra para apertar a campainha, com a mão de um histérico Gustavo tentando segurar a sua. Enquanto um jogo de empurra entre mãe e filho se travava na soleira da casa, a porta abriu e viu-se descoberta a moça em corpo inteiro, sorrindo, surpresa com a presença, mas educadamente tranquila para conversar com a senhora e seu filho ali na sua frente.
Gustavo a encarou e viu passar, nesse momento, todas as fotos, filmes, lembranças, comemorações, encontros, beijos, abraços, carinhos, intimidades e afetos que imaginou e nunca realizou com Aline. E a potência dessas sensações derreteu o que ainda o mantinha de pé na beira do abismo. Quem sabe a violência do impacto da realidade não puxara do fundo de Gustavo as fraquezas de sua personalidade e o incapacitaram instantaneamente quando viu seu momento da verdade ante Aline-de-carne-e-osso? Esse é o momento em que todas as imagens e fantasias, pairando sobre o corpo dela, finalmente pousam e se amalgamam num objeto poderoso, invencível na sua verdade, e diante do qual a fragilidade da existência perde o sentido? O que se faz numa hora dessas?
Gustavo decidiu ir embora. E deixou lá no hospital o seu corpo sem alma, ainda pulsando, mas sem mais nenhum sentido para a vida. Aline foi real demais para o que ele podia suportar.
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