Peças na posição inicial.
f3 | O peão das brancas avança de f2 para f3.
Sinto que ela abriu o jogo de forma irresponsável, pretensiosamente à deriva, talvez querendo me impressionar com sua ousadia e intrepidez. Mas eu ainda não fiquei convencido da sinceridade desse convite ao ataque. Talvez, em algum momento mais inóspito da vida, tenha eu confiado demais na fachada enganadora das intenções humanas. E agora, esmagado pelo arrependimento, entreveja compadrios por todos os lados, espreitando a qualquer momento o início do desmoronamento das minhas defesas. Faço cara de blefe e finjo ignorar a armadilha, enquanto me recomponho. Minha vez. Vamos sondar o terreno.
e5 | O peão das pretas avança de e7 para e5, ocupando o centro.
Vejamos até onde irá essa falsa hospitalidade. Nem adiantou vir com aquele sorrisinho faceiro no rosto, iluminado por uma alegria não se de quê. Captei instantaneamente o perjúrio comportamental, pensa que sou bobo? Eu sei muito bem onde tenho o gargumilho, entendo do meu pescoço, querida. Sim, também vou lhe atirar uns olhares limpos e macios, querentes de desejo, declarados misteriosamente sem palavras e sem maiores esclarecimentos. Vou encaixar essa piscadela sua com alvoroço controlado, levemente perturbado e com três batidinhas do pé no tapete debaixo da mesa — ainda bem que não faz barulho. E você...
g4 | O peão das brancas avança de g2 para g4, deixando o rei branco exposto.
Tenho que interromper a transmissão dessa partida porque a cena foi invadida por um batalhão de afetos, desordenados, indisciplinados e autoritários. Tomam conta do tabuleiro e só o que consigo enxergar, no meu cantinho da insanidade, são imagens potentes de encontros apaixonados e clandestinos. Vejo nós dois, desneurotizados, passeando de mãos dadas em algum parque furtivo da cidade. Mas logo retomo a razão pelo cangote e a espremo contra a parede: isso que está acontecendo não é verdade. Embaixo dessa camada de acenos e sorrisos, de facilitações enigmáticas em cada lance, certamente há algo à espreita e minha intuição insiste que esse risco seja evitado. Agora só me resta desmascarar o embuste.
Qh4# | A dama das pretas move-se de d8 para h4, dando xeque-mate. O rei branco, em e1, está completamente descoberto e não tem como escapar.
Xeque
Mate
Você me olha com uma lágrima de felicidade tentando desesperadamente não despencar na face esquerda. Aquela que, você sabe, fica no lado do coração. A noite avançou sobre as sombras do dia e agora é tarde porque a minha crueldade enfrentou sua gentileza. Daí... caí na sua maquinação.
Ela move docemente a mão direita até o Rei Branco e o deita sobre a casa preta, lugar onde nasceu e onde finaliza sua existência nessa partida.
Vergonhosamente, em silêncio, assisto à queda em câmera lenta de cada parede da minha solidão. Os tijolos são antigos, então a resistência é maior, assim como o desassossego e a trepidação do nervosismo. Mas o sofrimento é gostoso, a invasão inverteu o sentido e agora quem finca bandeira no meu território é a sua esperança. Declaro-me dominado e prisioneiro. Graças a você fica evidente, nesse momento, que pode haver algo incompreendido entre nós que ainda teria abastança suficiente para adoçar um pouco a amargura do desamor e da desconfiança. Percebo que podemos estar em plena rendição e desfrutando de uma derrota mútua consentida. A vida, por esperteza, pode ser um jogo com melhor sabor se a vitória for, por vezes, menos importante que o empate.
O xeque-mate do louco é o xeque-mate mais rápido possível no xadrez, ocorrendo em apenas dois movimentos das pretas, aproveitando erros graves das brancas. Esse mate é chamado de "xeque-mate do louco" porque é necessário que as brancas façam movimentos muito fracos logo no início.
É uma armadilha raramente vista em partidas entre jogadores experientes.
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